04/05/2009

A morte anunciada de Tititu e sua tribo

Na sala apertada, de janelas pequenas e paredes de cal desbotado, sentaram-se índios e não-índios. O ar condicionado velho fazia barulho e não esfriava.
– É muito triste sempre –, me diz a Lucília.
Ela tinha ido a Lábrea para a reunião do DISEI (Distrito de Saúde Indígena) onde as ONGs participam de decisões junto com orgãos públicos. A Lucília está sempre preocupada com a micro-cidade de Lábrea e suas mazelas: corrupção, devassidão extrema, doenças, falta de víveres, só para nomear algumas.
As gentes da Lábrea têm o rosto macilento de muitas malárias e muitas cachaças. Falam sem convicção, parecendo para um novato que não sabem do que dizem. Mas sabem; só não creem mais que algo possa mudar no caos de desserviços que os governos fingem prestar àquele arremedo de cidade.
– É isto que mais me dói –, me diz Lucília na volta. – Os índios baixam a cabeça como animais domesticados à custa de muita dor. O formato da reunião já é excludente. Discute-se como numa repartição pública, e os indígenas não acompanham.
A situação Suruwahá é discutida. Lucília imagina a dificuldade dos técnicos presos no posto distante de tudo. Parece que nem visitar a aldeia eles conseguem. O medo, o salário, menor ainda: – Os índios que se virem para andar até o posto.
E assim foi. No dia 14 de janeiro, Naru caminhou sete horas com a Tititu nos braços, antes gordinha e viva, agora de repente pele seca, sem vida. No posto faz-se uma chamada no rádio para Lábrea. A menina estava péssima o técnico não sabia tratar. Faz gestos e sons de avião para mostrar aos pais que ela deveria ser retirada. A noite caiu, a menina piorou, na madrugada o corpinho esfriou e foi endurecendo aos poucos. Se foi a alma da Tititu para o lugar cheio de bananas fartas e peixes grandes.
Tititu foi escolhida para morrer desde que nasceu. A Ideologia que mantém os Suruwahá impedidos de obter um tratamento médico decente prevê que casos de deformidade congênita têm que ser "eliminados" no nascimento. O pai se recusou a matá-la ao ver a deformidade com que nascera. Não conhecia a Ideologia, ainda se sentia gente. Pediu ajuda, Lucília e Moisés conseguiram retirá-la. Com a oferta de muita gente espalhada pelo Brasil afora, sem ônus ao erário, ela foi levada a São Paulo para ser operada no HC. A Ideologia envia um procurador do MP que proíbe a cirurgia. Os médicos ficam chocados com a proibição, mas não podem fazer nada. A TV divulga a história, a pressão se torna grande, o procurador desiste do impedimento e a menina recebe a operação que a torna gente. Volta à aldeia, precisando de um medicamento mensal. Enquanto a ONG está presente, a medicação chega. Agitamos meio mundo, vamos para a Funasa a cada atraso, envia-se avião arremessando a medicação. Até que a Ideologia nos impede de voltar à aldeia. Saímos de cabeça baixa. Nas mãos da Ideologia, os índios não têm chance. Para o CIMI, a Funai, a Funasa, eles não são gente. São um construto antropológico, um número nos gráficos. A falta do remédio na data certa poderia causar a morte da menina Tititu. Morte já prevista, escrita, desenhada, explicada academicamente na voz estridente da Ideologia. É a inexorável força do darwinismo social.
Tristes só ficamos nós, imaginando o sofrimento de Naru, o pai, e de Kusiumã, a mãe, carregando a filha na mata escura para vê-la esfriar de repente ao som de um forró desafinado no barraco de madeira do posto da Funai.

Profa. Bráulia Inês Ribeiro
Mestre em etnolinguística pela Universidade Federal de Rondônia
30 anos de experiência com comunidades tradicionais amazônicas

A burocracia do governo, que trata os índios como se fossem crianças (está numa lei idiota dessas por aí), opõe obstáculos imensos para a assistência à saúde dos indígenas. A carta acima, da minha irmã, que mora em Rondônia, é uma prova disso. Ela está sendo vítima de perseguição política do governo, que não considera índios como seres humanos, dotados de direitos básicos como o acesso à saúde pública. Envolveu-se nesse quiproquó e agora vai ter de mudar-se para o México. Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?

4 comentários:

Alice Salles disse...

MAS COMO ASSIM IMPEDEM QUE A MENINA SEJA OPERADA!? Mas isso não pode, como que ainda existe divisão em tratamento entre QUALQUER etnia legalmente? Eu não sei o que me deixa mais emputecida - desculpe o meu francês - saber que essas coisas acontecem a torto e a direito e ninguém se da conta ou saber que AINDA precisamos IMPLORAR para que as coisas mudem!

Paulo Barbosa disse...

É, Alice. A coisa é complicada. Deixar os índios morrer sem a devida assistência é um crime que o governo brasileiro vem cometendo.

Eugênio Magno disse...

Será que um outro (novo) mundo é mesmo possível? Continuemos a luta...
Eugênio Magno

Anônimo disse...

Faço minhas as palavras da Alice!
O governo e a Justiça, vem tomando atitudes completamente equivocadas com relação aos indígenas no Brasil.
No momento ocupam a sede da Funai em SP.