22/12/2010

Gambia agoniza sob Yahya Jammeh

O distinto leitor pouco terá ouvido falar de Gambia, exceto que se trata de um país da África. Fiquei sabendo mais sobre esta nação – crescida às margens do rio Gambia e tornada independente do Reino Unido em 1965 – por intermédio de um amigo com o qual divido o aluguel de um apartamento em Barcelona. Mâred (nome de ficção), um rapaz de vinte e poucos anos, 2 metros de altura e extraordinária vitalidade, deixou Gambia para tentar a sorte na Espanha, pela razão óbvia de que sua terra natal não lhe oferecia emprego. A mãe ainda vive lá e espera a sua volta neste fim de ano para as férias regulares, após três anos de exílio do filho dileto. Em Banjul, capital de Gambia, Mâred se unirá à família para celebrar Alá (é muçulmano) em torno de uma mesa onde todos comerão de um mesmíssimo prato, como reza a tradição local. São assim os gambianos, segundo conta Mâred, um povo pacífico, alegre, fraterno, que ouve o ritmo tantanjalu, fala o idioma mandinka, dança o sabarban, come fufu, futo, benachino, jambada e cuiculo.

Em Gambia, está-se livre das guerras étnicas que assolam boa parte dos países da África. A economia local poderia estar algo melhor, sem dúvida, se os ingleses não tivessem levado todo o diamante que havia nas minas gambianas nos anos setenta, informa Mâred. E se o país não tivesse passado por uma colonização predatória, na qual a principal “mercadoria” levada daquelas terras para os Estados Unidos, no século XIX, foi o ser humano. Hoje, o cultivo do cacahuete (amendoim) é a base de sustentação econômica do país, que tem petróleo e certamente muitas outras riquezas no subsolo, mas carece de toda tecnologia para extraí-los. Gambia, entretanto, padece de males piores que a economia em frangalhos: o país vive hoje sob uma das piores ditaduras do mundo contemporâneo, a do facinoroso Yahya Jammeh. Ex-sargento, Yahya derrubou o primeiro presidente de Gambia, Dawda Jawara [1] (hoje seu assessor), num golpe militar em 1994, tornando-se, desde então, um “presidente” sucessivamente reeleito, graças a odiosas manobras como a intimidação da população (só não há fraude porque as eleições são monitoradas por observadores internacionais). Mâred conta que, no último pleito (2007), Yahya mapeou o percentual de votos recebidos nas diferentes regiões do país, criando um parâmetro para saber onde se era contrário às suas diretrizes. Eleito, penalizou as regiões nas quais não obteve boa margem de votos com a não destinação de recursos durante seu governo, numa prática de fazer inveja a Stálin. Com isso, condenou parte expressiva da população – os contrários ao seu regime – a uma espécie de subvida, sem garantia da mais mínima proteção social.

Já seria suficiente este “presidente” estar no poder há 16 anos, comportando-se de maneira centralizadora, reprimindo a livre imprensa (é suspeito de mandar matar o repórter Deyda Hydara) e violando a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas há mais: há coisa de dois anos, Yahya ganhou as manchetes do noticiário internacional por ter baixado uma lei segundo a qual os gays e lésbicas gambianos seriam expulsos do país. Esta é a sua política para frear o índice de óbitos por aids em Gambia, mortes que poderiam ser evitadas se não desviasse os recursos para o tratamento da enfermidade, segundo informa Mâred, para suas fazendas, onde vicejam numerosas manadas de gado [2].

Se o leitor quiser continuar transitando pelas atitudes bizarras deste ditador, pode recorrer à internet, onde há vasto material sobre os delírios megalômanos de Yahya. Por hora, basta dizer que as muitas mazelas de Gambia são agravadas pelo regime obscurantista deste tirano. Em 2011, o país passará por novas eleições presidenciais. Se é improvável que Yahya recolha-se à lata de lixo da história neste pleito, pode ser um bom começo. Que os organismos internacionais trabalhem para garantir à população gambiana uma votação sem medo e que os números eleitorais não sirvam para chantagear esta mesma população, passadas as eleições, isto é o que desejamos para Gambia no ano que se avizinha. Esta é a única maneira de começar a abalar o poder do ditador, uma luta a exigir a urgente denúncia da opinião pública internacional. Passado o pesadelo Yahya, estarão dadas as condições para o início da superação da imensa dívida social deste jovem e bonito país, à espera de melhores dias.

15/12/2010

Sepia

Toda culinária tem suas excentricidades. No interior de Minas, farofa de tanajura é considerado um fino repasto. Comparo a farofa de tanajura à sepia (sic), um molusco marítimo parecido com a lula, apenas um pouco maior. Sim, trata-se do animal do qual se extrai uma tinta semelhante ao nanquim (de polvo), uma tinta de cor sépia. Fui surpreendido com um prato de sepia a la plancha na mesa do bom restaurante El faro, por 10 euros. Pedi sem saber o que era. Confesso que, num primeiro momento, quis devolver aquelas duas hóstias grandes, brancas e meio duras, fritas em azeite. O primeiro pedaço me deu engulhos. Depois fui me acostumando ao exótico paladar do fruto do mar que, tirante o gosto de alho e sal, não sabe a absolutamente nada. Mastiga-se, mastiga-se, e a coisa mais parece cartilagem de frango em tablete. Mas, que diabo, a sepia é um alimento muito saudável: praticamente não tem gordura, é 80% proteína, tem cálcio, vitamina D, B e outras mais. Virei, pois, um adepto - com reservas - da sepia, até comprei uma bandeja para fazer na frigideira. Só não posso olhar para as ventosas que subsistem em alguns pedaços, para não me lembrar da farofa de tanajura...

11/12/2010

In vino veritas






























A Catalunha tem misteriosas tradições, como o curioso “caganer” (foto), de origem medieval. Próximo do Natal, os catalães costumam colocar, nos presépios, um boneco de barrete vermelho e calças arriadas, entre a Virgem Maria e o Menino Jesus. É para dar sorte, segundo dizem. O que um sujeito de barrete exercendo suas funções vitais num presépio de Natal tem a ver com sorte, nem Deus saberia explicar. Em rápida visita à simpática cidade de Stiges, fui parar numa certa Granja (leiteria, em castelhano) Candelária, onde pude conhecer um lado menos escatológico, e não menos interessante, das tradições etílico-culinárias catalãs. O bar era especializado em vinhos e comidas típicas (isto é, comidas rápidas de se fazer, com todas as facilidades da cozinha moderna). Na parede externa desta “granja” – onde se vendia de tudo, menos leite –, o dono teve o cuidado de instalar uma série de azulejos coloridos, com ótimos desenhos populares, acompanhados de frases jocosas, à maneira de antigos provérbios. Comprei lápis e papel e anotei alguns desses rifões, de saborosíssima leitura para os aficionados do vinho e do bom prato, conforme se confere a seguir.

Dice el señor Codina, más vale beber mal vino que buena medicina.
Vino de viñas viejas, que bien te tomo, que mal me dejas!
El buen mosto sale al rostro.
Quien bien come y bien bebe solo de viejo se muere.
El vino para los reyes, el agua para los bueyes.
La mujer y el vino sacan al hombre el tino.
El dueño del mundo es el bebedor, porque bebe vino que es lo mejor.
Quien bien come y bien bebe bien hace lo que debe.
Dijo el sabio Salomon que el buen vino alegra el corazón.
Vayan entrando, vayan bebiendo, vayan pagando y vayan saliendo!

07/12/2010

Tributo ao arroz com feijão

Só quem esteve fora do Brasil por um tempo sabe a falta que faz um bom prato de arroz com feijão. Uma vez no estrangeiro, não há nada que seja remotamente parecido. Há arroz só, ou feijão só (nunca o preto, nunca o roxinho!), mas a sublime combinação entre os dois, nadica de nada. Recentemente, o flamenco, o canto da Sibila e os Castells catalães foram escolhidos pela Espanha para candidatar-se a patrimônios imateriais da humanidade. Daí que faço a sugestão: o Brasil poderia escolher o nosso inefável arroz com feijão para concorrer ao prêmio da Unesco. A fina mistura entre estes dois cereais nobres é digna de figurar entre os melhores pratos da culinária universal. Especialistas já a avalizaram como um dos pratos mais nutritivos que existem. E nada se compara ao sabor de semelhante iguaria, sobretudo quando temperada com alho, sal, cebola, uma folha de louro, algum toucinho e um dedo de pimenta. Lembro-me com saudade de como vão bem arroz, feijão carioca, bife de boi, salada e ovo frito. Ou ainda de uma boa panela de carne cozida com batata, couve, arroz, feijão e torresmo – para os pingófilos, com uma pinga de aperitivo. Chega a dar água na boca. Mas as qualidades do mais brasileiro dos pratos vão ainda mais além: trata-se de um prato democrático, ecuménico, multicultural e cidadão. Alimenta brasileiros de todas as colorações, de todos os sexos, está na mesa do pobre, do rico, do branco, do negro, do amarelo, dos petistas e dos “democratas”. Alho picadinho, sal e uma folha de louro frigindo na gordura… ay, ay, ay.

05/12/2010

Espanha Profunda

Não me perguntem o que é Espanha Profunda. Trata-se mais de um sentimento do que de um conceito facilmente formulável. Este sentimento surge de vez em quando e quando menos se espera. No metrô, por exemplo. Outro dia, no caminho para a Plaza Catalunha, pintou uma senhora cega cantando uma mistura de flamenco com cantochão árabe. Ela dizia repetidamente “no tengo dinero, no tengo casa, por favor, señor, por favor señora, gracias, señor, gracias, señora, no tengo para comer, etc…” Era um canto horrível, mas tão triste e sentido que muita gente se dispôs a dar-lhe uns vinténs. E alguns ainda olharam em volta para os que não deram esmola, com cara de reprovação. Este súbito vislumbre do que seria a Espanha sem as tintas da modernidade high-tech aplicada a este país há coisa de vinte anos, em face da sua incorporação à Comunidade Européia, está nas ruas, todos os dias. Nos velhinhos de boné e bengala dando comida aos pombos, no mendigo filósofo com suas conversas de alto nível com os transeuntes que têm a paciência de ouvi-lo, nos vendedores de castanhas torradas e batatas doces em ruas de circulação burguesa, na voz rouca e pré-cancerosa das mulheres neuróticas e tabagistas inveteradas, no jamón que os homens cortam com prazer sensual nos restaurantes, nos garçons parecidos com toureiros prestes a gritar Venga!, no sujeito imensamente gordo que passa o dia bebendo uísque e cerveja serenamente, apenas trocando de bar, e até nas crianças, que falam em nota e timbre diferentes, como seres de outro mundo. É nos restaurantes, porém, onde esta Espanha Profunda surge com maior frequência. Ouvi de soslaio um sujeito no balcão contar, orgulhoso, como seu irmão devorava uma paella inteira, sozinho. Um outro camarada contou piada infame, inventada na hora, a uma senhora à espera do café. Disse algo como: “sabe qual é a frase filosófica da batata? La salsa me pone a bailar…”

04/12/2010

Um homem, uma cidade

O homem estava disposto a gostar da cidade. Ávidos, seus olhos devoravam a paisagem de aço e concreto armado. Sobretudo a arquitetura exuberante impunha-lhe este admirar-se por um lugar cuja história parecia ter sido dedicada a desvendar o segredo de como dominar a pedra e o aço. Prédios, praças, parques, viadutos, monumentos, locais públicos, o espaço urbano surgia ali enfim subjugado, organizado à proporção dos desejos e necessidades dos homens, assolados pela necessidade também de transcender-se. Ferro, vidro, madeira, todos esses materiais incrivelmente insubmissos assumiam, no skyline da cidade, formas suaves, líquidas, sinuosas. Contemplar os prédios em perfil serpenteando pelo céu plúmbeo era-lhe, pois, um exercício filosófico. Aqueles edifícios haviam sido feitos por uma altíssima habilidade fabril. Podia-se chegar àquele nível de cuidado com o cenário urbano. Muitos séculos de aprendizagem técnica impuseram-se para isso, com efeito. Mas alcançou-se o ponto, o nec plus ultra da ambiência urbana. O mundo, a humanidade podiam ainda salvar-se: Gaudí não estaba brincando de playmobil.