22/02/2008

O fim do assovio

Ivan Lessa, jornalista do indefectível Pasquim nos anos 70, disse certa vez que deixaria o Brasil em favor da Inglaterra, porque não suportava mais a mania do brasileiro de assoviar. A julgar pelo que se vê nos ônibus, nas ruas, nos botequins, nas praças e nas residências do país hoje, o Lessa já pode voltar: o cenário parece ter sido completamente tomado por estranhas e quase invisíveis máquinas, dotadas de minúsculos fones de ouvido, denominadas i-pods (alguém me explique o que significa isso) ou palms (outra incógnita). Os maravilhosos virtuoses do assovio de um passado não muito distante foram, assim, condenados ao exílio, onde amargam um silêncio somente quebrado, vez em quando, por saudosistas bucólicos nos recônditos sertões desta nacionalidade. Há coisa de duas décadas, pelo menos, antes da invenção dos grandes e ensurdecedores head-phones (alguém se lembra?), o assovio era uma instituição nacional. Você entrava no ônibus, e não dava outra: lá estava um pobre-diabo (muitas vezes de chapéu) soprando a melodia triste por entre os lábios em forma de u. Invariavelmente, o camarada trazia uma bolsa a tiracolo (daquelas cujas tiras funcionavam também como fecho), na qual guardava a marmita, ainda quente, possivelmente com um ovo cozido, repolho e outros quitutes típicos dos marmiteiros. As canções que executavam, com o consentimento tácito dos outros passageiros, eram melodias perdidas no tempo, evocações de um passado interiorano qualquer, quiçá remontando ao Brasil Império, levadas aqui e acolá para afastar os maus espíritos do trabalho pesado e mal-remunerado. Pelo menos em mim, que assistia a tudo meio atônito, esses assovios melancólicos batiam como uma espécie de bálsamo a atenuar as muitas mazelas adivinhadas naquelas biografias miseráveis. Mas os bons assoviadores de BH não estavam somente nos ônibus: também pelas ruas e avenidas da cidade era comum que se ouvissem assovios cheios de ecos, com silvos longos e sincopados, em harmonias barrocas e, algumas vezes, até modernas. Na praça da Estação, então, isso era regra: pelos bancos e jardins da praça, sempre havia um retirante qualquer embasbacado pelos edifícios altos como gigantes, tirando de ouvido a música de um interior longínquo, a plenos pulmões, para o conhecimento dos surpresos transeuntes. E a coisa se disseminava também em outras esferas: um amigo meu de colégio, hoje saxofonista de boa água, era capaz de improvisos jazzísticos de fazer inveja a Charlie Parker e John Coltrane, após muitos e necessários goles de cerveja. Ao que me lembro, a tradição do bons assoviadores chegou mesmo a ser registrada em alguns shows de calouros, tipo Sílvio Santos, em que os caras lutavam bravamente pelos seus merecidos 15 minutos de fama, imitando passarinhos e quetais. Bem, hoje tudo isso está ameaçado pelos malditos i-pods. E alguém me explique que diabo significa isso.

Postado por Paulo Barbosa às 01:34 0 comentários

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