10/04/2008

Bispo

Não sei há quanto tempo estou aqui.
No início, cheguei a pensar que estivesse de fato louco.
Hoje, entendo as razões dos homens para me prender.
Transito na linha de tangência entre lucidez e loucura.
Com fio e agulha, reconstruo o mundo ponto por ponto.
Sou um funcionário, antes de mais nada.
Registro o que vejo em minha jornada sobre a Terra.
Elaboro a lista de todos os engenhos humanos,
Costuro o manto das coisas fantásticas, fabulosas, sagradas e bizarras.
Refabrico a galáxia, com seus milhões de estrelas,
planetas, asteróides, nuvens noctulescentes, poeiras,

corpúsculos, nebulosas e buracos negros.
Leio o livro que contém todos os outros.
Escrevo o livro de areia, passo ao mundo dos espelhos.
Nomeio os bichos que entrarão na minha arca.
Tudo que existe e que se move viajará comigo,
rumo ao encontro final com Deus.
Porque d’Ele recebi esta missão.
A missão de reunir as coisas que andavam dispersas ou expatriadas.
O basilisco, os dragões, os macacos, os pássaros de fogo,
a corda dos enforcados, a navalha do barbeiro, a cadeira dos réus,
o ringue dos pugilistas, a proa dos navios, o baton das prostitutas,
os caquinhos do muro, as canecas, as congas dos internados,
a cama, o penico, os aviões, os pássaros, a flor, os amores insepultos,
as garrafas de pinga e de cerveja, o chicote, os tênis, os carros, as bicicletas,
a torneira, em seu capricho industrial, as muitas noites indormidas,
os males do corpo e da mente, os instrumentos, as ferramentas,
as músicas, as mulheres que amei, os homens que não conheci,
tudo isso estará comigo no paraíso.
Vou tecendo com agulha e linha, que retiro de guarda-pós,
Também as palavras – todas as palavras – que dão sentido à vida,
pois elas são, enfim, a vida mesma, em estado latente.
Para uns, isto é substituir Deus. Para mim, é servir Deus.
Afinal, eu sou o Bispo, Arthur Bispo do Rosário,
Senhor do infinito e dos labirintos, escrivão do universo,
arquiteto das pirâmides, das odisséias, dos colossos,
das estátuas e dos monumentos, bibliotecário de Babel,
fundador de Orbis, Tertius e Uqbar, irmão de Funes, o memorioso,
urdidor das preces, das poesias e dos milagres não concretizados,
fabulador de todas as histórias, lidas ou não lidas,

ouvidas ou olvidadas, contadas ou não contadas.
E não sairei de dentro dessas quatro paredes, enquanto não terminar esta obra.


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