25/07/2008

Notas de um consumidor flâner

Estava às voltas com um celular pouco falante. Depois de um périplo para descobrir o defeito, vou ao shopping popular Tupinambás, atrás de um certo “Pronto-socorro do celular”. Andar por esses corredores estreitos é como percorrer uma instalação sobre o apocalipse, a antevéspera do caos, a ante-sala do inferno. Em sociedades barrocas, como a nossa, o cenário chega a ser comum: sobrecarregam todos os espaços possíveis e imagináveis de adereços e acessórios inúteis: trata-se, com efeito, de um objetivo mais estético do que pragmático. A estética da carnavalização, diria Oliverio Sarduy. Mas também há um aspecto trágico por detrás de todo esse excesso, esse acúmulo de plumas, paetês, quinquilharias eletrônicas, dvds pirateados, tralhas domésticas e badulaques em geral a adornar os inúmeros balcões daquelas prateleiras e barracas: as pessoas ali parecem já ter passado por poucas e boas, trilhado caminhos acidentados, minados por toda sorte de adversidades. A acumulação exasperada de itens supérfluos, perfunctórios, procura esconder aquilo que não se quer deixar ver. Lê-se perfeitamente nos olhos daquelas pessoas, porém, a vida esfrangalhada que levam. Ainda que, naquele exato momento, experimentem um efêmero orgasmo com o que chamam eufemicamente de seu “próprio negócio”.
Shoppings populares: eis a contravenção consentida, institucionalizada, e, por isso, todo cuidado é pouco. O cara que vai consertar o celular pode ser um trambiqueiro, de olho no chip novo do aparelho, o qual pode retirar, à socapa, e revender por preço melhor, colocando um outro, velho e gasto, no lugar. Na certa ele já o fez, sem que eu percebesse. Faço-me de bobo e aceito suas explicações estrambólicas, como alguém inferior, estúpido diante da sua fina erudição, hábil em não flexionar os verbos no plural. Saio dali iludido, ingenuamente feliz. À primeira verificação, porém, o aparelho já não funciona. Dirijo-me agora a outro shopping, este mais middle class, na tentativa de solucionar o problema. Consulto uma segunda opinião, no stand da operadora, e deparo com a burrice ministrada com extrema arrogância de atendentes despreparados para informar o óbvio. Só os muito sagazes enxergam o óbvio, claro. Para vê-lo, é preciso indagar-se, perguntar, duvidar exaustivamente. E alguém ali estaria preparado para tal e tanto? A melhor reposta que se encontra no parco repertório que lhes é dado repetir será um sorriso idiota no rosto e a presunção de quem acha que entender da propositalmente complexa logística das operadoras de celulares é não mais que uma obrigação. Não obstante, aceito com muita educação ser enganado e ainda compro dois cartões pré-pagos, que na certa nunca irei utilizar. É assim. Deve ser assim, é o que dizem.
Tomo um táxi e estou agora numa clínica, para um exame de ressonância magnética no joelho esquerdo. A enfermeira pede-me para tirar a roupa e colocar um avental. Sinto frio nos pés e reclamo da demora. Peço também para que não examinem meu útero, pois não apresento sinais de gravidez. Zangada, a moça responde que não atendem quando a menstruação atrasa. Dou-lhe razão e, algum tempo depois, sou levado para o estranho tubo. Pergunto se a máquina provoca ereções ou, no limite, impotência, e os enfermeiros não demonstram muito senso de humor. Este é um ambiente asséptico, clean, inútil insistir em qualquer coisa que devolva autômatos à condição humana. Médicos, atendentes e enfermeiros dão sempre respostas calculadas, pensadas para não incomodar. Sou colocado no tubo: a coisa faz um barulho infernal, semelhante ao de uma máquina de lavar roupa, com você girando lá dentro. Os enfermeiros o observam detrás de um vidro, como numa sala de interrogatório da PM. Se você mexe a perna, eles gritam num alto-falante: "favor permanecer imóvel". Terminada a sessão, o enfermeiro pergunta “que tal?”. Eu digo que prefiro bossa nova, não curto muito o techno. O rapaz sequer responde. Tenho tempo de ouvir a outra enfermeira, ainda irritada: “vou sair, para não estressar.”

Um comentário:

Alice Salles disse...

primero: "instalação sobre o apocalipse, a antevéspera do caos, a ante-sala do inferno" HAHAHAH mto perfeito!
Segundo: como voce quer que eles tenham senso de humor!? Acham que o servico que eles fazem a humanidade eh nada mais do que um... servico! nao se tem bom humor aqueles que fazem.... SERVICO!
e terceiro, sim, amo dylan thomas! ;)