28/09/2008

Cinema, radiografias e Méliès

Recentemente fui acometido de um ataque de pedra nos rins. Em meio à dor excruciante causada pela pedra atravessando meu ureter, fui submetido, no hospital, a uma bateria infindável de exames. Além das rotineiras análises de sangue e de urina, dá-lhe raios-x, tomografias e ultra-sons. Exames de natureza endoscópica como esses descendem de um ancestral comum: as radiografias, que, por sua vez, têm raízes na velha vontade humana de tudo ver, de devorar o mundo com um insaciável olhar voyeur. Se as radiografias tiveram sua gênese à mesma altura que o cinema e provêm da mesma pulsão escópica que alimentava as "moving pictures", seus objetivos eram algo diferentes. O cinema dos Lumiére, por exemplo, queria registrar o que havia lá fora, nos mais distantes rincões do planeta. Já a radiografia queria ver o que havia dentro, nas mais remotas e sinistras paisagens do interior humano. Talvez pela diferença entre seus objetos de estudo, as duas “mídias” tiveram caminhos díspares. O cinema percebeu que se continuasse a serviço da realidade “científica” dos Lumière rapidamente iria sucumbir. Graças a Méliès, descobriu que podia se libertar das vistas lumierianas e seguiu sua vocação de servir ao maravilhoso, como, bem ou mal, faz até os dias de hoje. Já os raios-x continuaram escravos da objetividade. E não há nada mais assustador do que uma radiografia, assim como boa parte dos métodos médicos. Lembro-me das palavras e do prazer orgástico do urologista ao analisar um raio-x da minha barriga: “aqui não podemos ver a pedra, porque ela deve estar atrás do material e dos gases intestinais. Podemos enfiar um tubo pela sua uretra e destruir a pedra, etc, etc.”. Temendo pelo meu aparelho urinário, eu não via nada naquelas radiografias além de um monte indistinto de manchas. Mas o olho treinado do médico descobria coisas insuspeitadas: era como um vidente, consultando seus búzios. Fato é que o olhar técnico dos médicos acostumou-se aos desenhos fantasmagóricos das radiografias, e até consegue ver beleza naquilo, a mesma beleza que um matemático entrevê, por exemplo, numa equação complexa. Mas, como os desenhos de anatomia de Vesalius e dos mestres renascentistas, os raios-x têm, para mim, o mesmo interesse que é despertado quando se está diante do feio, do horrível: o feio atrai e tem algo de erótico. É parte daquilo que se pode descobrir, em se vivendo no mundo, afinal, e Thomas Edison sacou isso ao filmar a eletrocução de um elefante, em 1900: ele queria alimentar o apetite das massas pelo bizarro. Ou talvez ele tivesse um puta mau gosto mesmo. Seja como for, não se pode viver de feiúra, porém não há como ficar sem beleza, como intuiu o gênio Méliès, ao direcionar o seu cinema para a narrativa fabular. Dito de outra forma, não há nada que me faça achar radiografias, ultra-sons e tomografias simpáticas, exceto pelo que têm de estranho, muito estranho.

2 comentários:

Alice Salles disse...

nossa! pedras nos rins... ai que dor! espero que você esteja bem melhor agora e sim, não tem nada de prazer nas técnicas médicas mas o estranho é sempre, sempre muito intrigante.

Paulo Barbosa disse...

Tem outro cáculo aqui, Alice. Não sei se é nóia minha, mas acho que está começando a doer. Muito obrigado pela atenção.