13/11/2010

Sudacas, Orwell e Barcelona

Barcelona, Parc de Can Sabaté: vindo do alto, um ovo explode muito próximo do meu pé. O parque fica entre prédios residenciais dotados de varandas externas (terrazas), como é comum nesta cidade. Afora xenofobia hidrófoba, não há razão que explique esse ovo cair do céu, justo na minha direção, já que galinhas não costumam voar. Examinei-o e não estava podre, logo, também não poderia ser o descarte de um produto vencido, quanto mais em um país de primeiro mundo, onde, presume-se, não se jogam coisas pela janela. Atiraram o ovo em mim, de caso pensado, de uma daquelas varandas, é o que parece. E não me surpreendo com isso: preconceito e horror ao estrangeiro das periferias, aqui, são moeda corrente. Foram-se os tempos de uma Barcelona heróica, universal e cosmopolita, baluarte da liberdade e da cultura modernas e que inclusive mereceu um livro fenomenal de George Orwell, Homenagem à Catalunha . Hoje, a realidade política da cidade é outra, como se nota pela animosidade contra estrangeiros asiáticos, latinos e afros, nas ruas, no comércio e até em lugares públicos. A Barcelona atual está mais para uma província presa a injustificáveis medos abissais do que para a Barcelona dos anos 1930, tomada pela febre anarco-sindicalista magistralmente descrita nas páginas de Orwell.
Comezinho, este horror aos chinos, sudacas, afros e árabes tem origem, sem dúvida, no vigoroso fluxo migratório rumo à Espanha, nos últimos vinte e poucos anos. O senso comum local dá como natural a acintosa discriminação assistida todos os dias aqui, onde esses estrangeiros figuram como origem de todos os males. E o preconceito começa a ser uma prática defendida abertamente por políticos da extrema-direita catalã, que já segrega mão-de-obra de determinadas etnias. Regras mais rígidas para a imigração são, ainda, ponto de pauta obrigatório no debate eleitoral em curso, para políticos barceloneses de todas as colorações. Oxalá a guerra surda contra os imigrantes, hoje feita com ovos, insultos e olhares enviesados, não se torne uma guerra de fato, com tiros ou granadas disparados do alto de prédios contra estrangeiros exóticos…
Um colombiano com o qual divido o aluguel de um apartamento é taxativo: Barcelona é a cidade na qual há mais preconceito contra estrangeiros asiáticos, africanos e sul-americanos. Muito diferentemente de Madrid, onde comunidades árabes, colombianas, peruanas, argentinas, brasileiras, africanas etc. já fazem parte da paisagem cultural. Em geral, os imigrantes vêm para cá para fazer o trabalho que os espanhóis precisam, mas não fazem – ou porque não querem, ou porque não podem . São operários da construção civil, taxistas, garçons, babás, domésticas, faxineiras, fruteiros, barbeiros, lixeiros, balconistas, um sem-número de profissões necessárias ao país e sem dúvida geradoras de riqueza. Esses imigrantes – jovens, em sua grande maioria – costumam ser pacíficos, gentis e calados, pois têm medo de perder o pouco que conquistaram em seus anos de exílio voluntário. Recebem salários baixos para a média espanhola e européia, submetendo-se, não raro, a jornadas de trabalho escorchantes. Abandonam sua cultura, sua gente, e vivem tristes, degredados de si próprios, sonhando com uma volta triunfal à terra natal com muito dinheiro no bolso, sonho que não se realiza nunca, pois o custo de vida aqui é altíssimo e não permite muitas economias. Passado algum tempo de Espanha e conquistada a tão sonhada cidadania (cujo processo leva em torno de cinco anos para se concluir), acabam ficando ou porque já é tarde para partir e reconstruir a vida no país de origem ou porque se adaptaram, por mal dos pecados, à tirânica atmosfera local. No fundo, há sempre aquela vontade de voltar...
Escrevo tudo isto, enfim, porque esta é a gritante realidade com a qual fui imediatamente confrontado aqui, mesmo nesta rápida passagem pela cidade, a encerrar-se tão breve quanto possível. Não digo que não haja uma Barcelona verdadeiramente democrática e solidária como foi sua vocação nos tempos da Guerra Civil. Há de estar viva na memória de alguns barceloneses – certamente mais sensíveis e inteligentes – a fase em que esta cidade representou autêntica resistência ao fascismo. É na nobre história de Barcelona, pátria de artistas universais como Antoní Gaudí, Antoni Tàpies e Joan Miró, berço da resistência aos ditames dos franquismo, portanto, que os imigrantes devem se apoiar para fazer-se respeitar por quem se arroga no direito de ter mais direitos que seus iguais.

2 comentários:

Paulo Talarico disse...

Poxa Paulinho
e olha que logo na terra de Miró, Picasso, Dalí, Pablo casales e tantos mestres.
Que pena barcelona estar assim
Pelo visto saudades de Franco
mas pode deixar, não vamos jogar ovos neles, quando vierem fazer turismo sexual aqui não, aliás temos que poupar os ovos para a população que passa fome, e no mais seremos bem mais educados que els
E eles deviam jogar ovo e ná.....

Paulo Barbosa disse...

Grande Tala!!! Ahahahah!! É isso aí, afiado como sempre. Um abraço, mano velho!