05/12/2010

Espanha Profunda

Não me perguntem o que é Espanha Profunda. Trata-se mais de um sentimento do que de um conceito facilmente formulável. Este sentimento surge de vez em quando e quando menos se espera. No metrô, por exemplo. Outro dia, no caminho para a Plaza Catalunha, pintou uma senhora cega cantando uma mistura de flamenco com cantochão árabe. Ela dizia repetidamente “no tengo dinero, no tengo casa, por favor, señor, por favor señora, gracias, señor, gracias, señora, no tengo para comer, etc…” Era um canto horrível, mas tão triste e sentido que muita gente se dispôs a dar-lhe uns vinténs. E alguns ainda olharam em volta para os que não deram esmola, com cara de reprovação. Este súbito vislumbre do que seria a Espanha sem as tintas da modernidade high-tech aplicada a este país há coisa de vinte anos, em face da sua incorporação à Comunidade Européia, está nas ruas, todos os dias. Nos velhinhos de boné e bengala dando comida aos pombos, no mendigo filósofo com suas conversas de alto nível com os transeuntes que têm a paciência de ouvi-lo, nos vendedores de castanhas torradas e batatas doces em ruas de circulação burguesa, na voz rouca e pré-cancerosa das mulheres neuróticas e tabagistas inveteradas, no jamón que os homens cortam com prazer sensual nos restaurantes, nos garçons parecidos com toureiros prestes a gritar Venga!, no sujeito imensamente gordo que passa o dia bebendo uísque e cerveja serenamente, apenas trocando de bar, e até nas crianças, que falam em nota e timbre diferentes, como seres de outro mundo. É nos restaurantes, porém, onde esta Espanha Profunda surge com maior frequência. Ouvi de soslaio um sujeito no balcão contar, orgulhoso, como seu irmão devorava uma paella inteira, sozinho. Um outro camarada contou piada infame, inventada na hora, a uma senhora à espera do café. Disse algo como: “sabe qual é a frase filosófica da batata? La salsa me pone a bailar…”

Nenhum comentário: